Meritocracia é uma palavra bonita. Não. É uma palavra que
remete a uma coisa bonita: que cada um receba de acordo com seu mérito, que em
geral é igual a esforço, dedicação; às vezes se inclui a inteligência.
E
— é o que garantem alguns liberais — é isso que vigora no
mercado. Quem se esforça, chega lá.
É questionável até que ponto esse tal mérito pessoal sequer exista. Hélio Schwartsman, na Folha, apontou aquele fato que ninguém gosta de lembrar: o esforço pessoal, o suor, a capacidade de trabalho, a inteligência; todos dependem de variáveis que estão fora da escolha pessoal — do mérito, portanto — do indivíduo. Essa esfera do que é só meu, do mérito próprio distinto das circunstâncias do ambiente e da história, simplesmente não existe. Ao menos, não da forma simplória que se vende.
É questionável até que ponto esse tal mérito pessoal sequer exista. Hélio Schwartsman, na Folha, apontou aquele fato que ninguém gosta de lembrar: o esforço pessoal, o suor, a capacidade de trabalho, a inteligência; todos dependem de variáveis que estão fora da escolha pessoal — do mérito, portanto — do indivíduo. Essa esfera do que é só meu, do mérito próprio distinto das circunstâncias do ambiente e da história, simplesmente não existe. Ao menos, não da forma simplória que se vende.
E
existindo ou não, será verdade que o mercado premia justamente o mérito? Se
for, caro liberal, então você está obrigado a defender que Gugu Liberato e
Faustão têm mais mérito do que um professor realmente excelente e que realmente
ensine coisas úteis.
Nada
contra o Gugu e o Faustão, mas eles não são meu exemplo ideal de disciplina,
dedicação e trabalho duro. E, mesmo assim, o mercado os recompensa muito bem.
Do outro lado, milhões de trabalhadores labutam dia e noite, e outros milhões
de desempregados procuram o que fazer, e continuam pobres. Ainda falta esforço?
São preguiçosos, burros talvez?
Nada
disso.
O
que realmente determina a remuneração no mercado não é o
mérito, não é a virtude, não é o esforço ou a
dedicação. É apenas a criação de valor; o valor que aquela pessoa
consegue adicionar à vida dos demais.
Não
importa se é por esforço, inteligência, sorte, talento natural, herança; quanto
mais imprescindível ela for aos outros, mais os outros estarão dispostos a
servi-la.
O
esforço por si só não garante nada. É verdade que, tudo o mais constante, se a
pessoa encontra um campo em que ela gera valor, o esperado é que mais esforço
gere mais valor. Com o passar das gerações, a ascensão social se acumula: a
filha da retirante nordestina que trabalha de empregada tem computador, aula de
inglês e provavelmente não será doméstica quando crescer.
É
assim que as sociedades enriquecem. Não é de uma hora para outra, e não tem
nada a ver com a crença ingênua de que a renda é ou deveria ser proporcional ao
mérito.
Nada
é garantido. Às vezes o setor em que o sujeito trabalha fica obsoleto, e o
valor produzido pela dedicação de uma vida cai abruptamente. Havia gente muito
dedicada entre os técnicos de vitrola de meados dos anos 1990; e mesmo assim…
Meritocracia
é um conceito que se aplica ao interior de organizações. Promover membros com
base no mérito (em geral medido por algum indicador) pode ser melhor do que
fazê-lo por tempo de serviço, pela opinião subjetiva de um superior etc.
Meritocracia é um modelo de gestão. Até mesmo o governo, por exemplo,
poderia se beneficiar dela, reduzindo suas ineficiências. Não é um modelo
sem falhas: a necessidade de mostrar resultados cria uma pressão interna muito
grande e pode minar a cooperação, a manipulação dos indicadores pode viciar o
sistema de avaliação.
Encontrar
o sistema mais adequado a cada contexto é uma questão de administração, de
funcionamento interno de organizações, que nada tem a ver com o mercado.
Mercado é o processo (sim, memorizem isso: o mercado é um processo)
no qual algumas organizações existem e operam. Às vezes organizações nada
meritocráticas prosperam no mercado, e organizações meritocráticas podem
existir fora dele.
Satisfaça
as necessidades dos outros, e as suas serão satisfeitas. Não importa se é por
mérito, por sorte ou por talento. O cara mais esforçado e bem-intencionado do
mundo, se não criar valor, ficará de mãos vazias.
Achou
injusto? Então aqui vai um segredo: é você quem perpetua esse
sistema. Se sua geladeira quebra, você vai querer um técnico esforçado e que dê
tudo de si, ou vai querer um que faça um ótimo serviço, com pouco esforço e a
um baixo custo? Quer um restaurante ruim mas com funcionários esforçados ou
quer comer bem? O mundo reflete o seu código de valores e, veja só, ele não é
meritocrático.
A
vida não é e nem deve ser uma corrida que parte de condições iguais e na qual,
no fim do jogo, vencem os melhores. Na medida em que esse sonho meritocrático é
sequer possível (estamos muito longe de corrigir desigualdades genéticas, por
exemplo), ele exigiria um investimento enorme só para produzi-lo;
sacrificaríamos valor para criar condições artificiais que se adequem a esse
ideal abstrato. Todos ficariam mais pobres para realizar esse sonho moral.
Mas
quem disse que a igualdade é moralmente superior à desigualdade? Se um
meteorito cai na minha casa e não na sua, isso é injusto? É imoral?
O
sistema de mercado não premia a virtude; ele premia, e portanto incentiva,
o valor. É feio dizê-lo? Pode ser, mas ele tem um lado bom: é o
sistema que permite que a vida de todos melhore ao mesmo tempo. Que todo mundo
que quer subir tenha que ajudar os outros a subir também. Ele não iguala o
patamar de todo mundo, mas garante que a direção de mudança seja para cima.
O
ideal da meritocracia tem o seu apelo, mas ele depende de meias-verdades: a
ideia do mérito que é só meu e de mais ninguém, a de que meu suor justifica o
que eu ganhei. Sem suor ou inteligência, o ganho é sujo, indevido. Mas o outro
lado dessa moeda é feio: implica dizer que quem não chegou lá não teve mérito;
que a pobreza é culpa do pobre.
A
lógica do mercado é outra: você criou valor, será recompensado. Sua riqueza não
diz nada sobre o seu mérito; ela não justifica e nem precisa ser justificada. O
resultado desse foco no valor é que mais valor é criado. Você recebe aquilo que
entrega e todos ganham.
[Nota
do IMB: por que Faustão, Gugu, jogadores de futebol e artistas globais ganham
mais de R$ 1 milhão por mês ao passo que um professor realmente bom ganha
apenas uns R$ 5 mil? Um bom professor pode realmente gerar valor, mas ele
gera valor para uma quantidade ínfima de pessoas ao ano.
Quantos alunos diferentes ele tem? Provavelmente, não mais do que 200 (um
número bem exagerado). Portanto, ele cria valor para 200 pessoas por
ano. É uma produtividade extremamente baixa. Já os indivíduos
supracitados têm alcance nacional (alguns, mundial), milhões de pessoas
consomem voluntariamente seus serviços, e eles geram retornos — goste você ou
não deles — para seus empregadores semanalmente, que estão
satisfeitos em lhes pagar salários milionários. Se não gerassem valor,
seria simplesmente impossível terem esses salários.]
FONTE: Joel Pinheiro, mestre em Filosofia