Em meio ao descrédito merecido em que cai
todo o campo das nossas autoridades políticas, debato com os alunos o que
chamamos de “Cultura do narcisismo”. Entre muitos outros aspectos, ela diz
respeito a uma crise no exercício da função paterna, o que, em psicanálise, diz
respeito à função simbólica de mediação, inserção social no mundo da lei e do
convívio com o outro. Na falha da função paterna, ficamos imersos na
indiscriminação narcísica, expostos à persecutoriedade por um outro onipresente
e saturante.
Socialmente, isto equivale ao vale tudo- que
os mais velhos se lembram de ter vivido no governo Sarney- e que volta com a
cara de pau com que cada um dos atores políticos briga por seu interesse sem
sequer disfarçar estar interessado no país ou no que é certo.
Para deixar a crise da função paterna ao
longo do século 20 mais tangível, recorro a uma imagem cinematográfica um pouco
desconcertante. Peço que eles se lembrem do filme de animação infantil “Bambi”,
de 1942. Durante os primeiros momentos do filme, assistimos a um ao nascimento
dele num ambiente acolhedor e leve, com a mãe e amigos que vão sendo
descobertos. Depois de algum tempo, surge no alto de um morro um cervo adulto.
Entende-se, é o pai. Talvez Bambi nunca tenha visto o pai até então, ele provavelmente
não é uma presença em seu cotidiano, mas é condição de possibilidade para que
aquele ambiente acolhedor exista. Ele provê e protege. Um pai caricato na
função paterna é distante, temido, respeitado. Sua função é preparar o filho
para a autonomia, para viver sem os pais um dia. A função dos pais é se
tornarem prescindíveis: eles terão feito seu serviço se tiverem criado alguém
razoavelmente capaz de dar conta de si e que, então, vai embora de casa.
Assim, meu pai dizia com orgulho jamais ter
trocado uma fralda minha ou de minhas irmãs. Quando ele virou avô e rolava no
chão brincando com o neto, recebeu minha reclamação: “Puxa pai, comigo você
nunca brincou assim”. Ao que ele respondeu: “Claro, eu sou seu pai e meu
trabalho era educar você; agora eu sou avô e meu papel é estragar o neto,
fazendo tudo que dá vontade”.
De meados do século passado para cá, o papel
do pai mudou. Digo hoje eu, com o mesmo orgulho de meu pai: “Troquei muita
fralda e ajudei nas funções de cuidado básicas de minhas filhas”. Os homens
cuidam, as mulheres também saem de casa para trabalhar: as funções maternas
paternas estão embaralhadas.
Nada de ruim nisto, desde que a as funções
sejam exercidas. O problema é que num certo momento, ninguém mais quer exercer
aquela função. Ao invés de querer ser respeitado, o pai também quis ser amado.
E aqui a coisa complica: se eu digo não e frustro meu filho, ele diz que deixa
de gostar de mim e que prefere o outro do casal parental. A partir daí, o
exercício da função parenta passou a ser uma batata quente que um joga para o
outro: “Pergunta para a sua mãe se pode!”.
O exercício da paternidade se torna mais
egoísta: “eu quero que meu filho seja feliz e quero ser feliz com ele”. Querer
que o filho seja “feliz” é muito diferente de querer prepara-lo para a vida.
Esta situação é duplamente complicada nas
situações cada vez mais comuns de separação entre os pais, que vivem em casas
separadas. Passa a haver uma verdadeira competição sobre quem é “mais legal”,
significando permissivo. “Quem dá mais presente?” também funciona como
critério. As crianças não são bestas e logo aprendem a manipular a situação:
“mas na casa do outro pode!”; “eu gosto mais do outro e quero fica mais tempo
na casa dele”, etc.
A partir dos anos 70, algumas famílias
jogaram a batata quente para a escola, esperando dela a educação de seus
filhos; mais recentemente, terapeutas e medicações tem sido evocadas no mesmo
sentido. Os pais levam o filho ao psiquiatra ou psicólogo esperando que os
profissionais curem o filho adolescente de ser distraído, folgado, desobediente
e chato. A resposta natural seria: “é claro que ele está chato; ele é
adolescente e seu filho!”.
E, muito provavelmente, não recebeu
referências e limites na infância.
Com a proximidade das provas de final de
semestre, lá vamos nós nos aventurar na necessidade de dar feed backs aos
alunos sobre seu aproveitamento do curso e lidar com seu pouco hábito e
resistência à frustração.
Pedro
de Santi
Psicanalista, doutor em psicologia clínica e mestre em filosofia. Professor e Líder da área de Comunicação e Artes da ESPM.
Psicanalista, doutor em psicologia clínica e mestre em filosofia. Professor e Líder da área de Comunicação e Artes da ESPM.