De onde veio e quais são as suas intenções? A simplicidade destas perguntas pode ser enganadora e poucos líderes ocidentais parecem saber as respostas. Em Dezembro, o New York Times publicou declarações confidenciais do major Michael K. Nagata, o comandante de Operações Especiais dos Estados Unidos no Médio Oriente, em que este admitia que não conseguia perceber o autoproclamado Estado Islâmico (EI). “Não conseguimos derrotar a ideia [por trás do movimento]”, disse. “Nem sequer conseguimos perceber a ideia.” No último ano, o Presidente Barack Obama tem-se referido ao Estado Islâmico ora como “não islâmico”, ora como “a equipa de novatos” da Al-Qaeda, comentários que revelam a confusão sobre o grupo e que podem ter contribuído para erros de estratégia grosseiros.
O EI
conquistou Mossul, no Iraque, em Junho passado, e já exerce poder sobre uma
área maior do que o Reino Unido. Desde Maio de 2010 que Abu Bakr al-Baghdadi é
o seu líder, mas até ao Verão passado, a última vez que tinha sido filmado fora
sob cativeiro americano em Camp Bucca durante a ocupação do Iraque, onde
aparecia numas imagens granuladas. Então, a 5 de Julho do ano passado, durante
o Ramadão, subiu ao púlpito da Grande Mesquita de al-Nuri, em Mossul, para um
sermão em que se autodeclarava o primeiro califa ao fim de várias gerações —
fazendo um up grade na resolução da sua imagem, que passou
de granulada a alta definição, e da sua posição de guerrilheiro fugido das
autoridades a comandante de todos os muçulmanos. O afluxo de jihadistas que se
seguiu, vindo de todo o mundo, foi inédito em ritmo e quantidade, e ainda não
parou.
De certa
forma, a nossa ignorância sobre o Estado Islâmico é compreensível: é um reino
obscuro e poucos foram até lá e regressaram. Baghdadi só falou para as câmaras
uma vez, mas o seu discurso e os incontáveis vídeos de propaganda e encíclicas
do EI estão acessíveis na Internet, e os apoiantes do califado têm feito tudo o
que está ao seu alcance para dar a conhecer o seu projecto. Podemos concluir
que o EI rejeita que a paz seja uma questão de princípio; que deseja um
genocídio; que as suas posições o tornam constitucionalmente incapaz de certas
mudanças, mesmo que estas garantam a sua sobrevivência; e que se considera o
agente — e actor principal — do fim do mundo, que está iminente.
O Estado Islâmico, também
conhecido como Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), segue uma
variante específica do islão, cuja crença no Dia do Juízo Final tem importância
na sua estratégia e poderá ajudar o Ocidente a conhecer melhor o inimigo e
prever o seu comportamento. A sua subida ao poder é menos parecida com o
triunfo da Irmandade Muçulmana no Egipto (um grupo que os líderes do EI
consideram apóstata) do que com a realidade alternativa distópica que [os
líderes de seitas americanas] David Koresh ou Jim Jones quiseram criar para
governar não apenas umas centenas de pessoas, mas oito milhões.
Não temos
sabido compreender a natureza do Estado Islâmico. Primeiro, tendemos a ver o
jihadismo como monolítico e a aplicar a lógica da Al-Qaeda a uma organização
que, sem dúvida, a ofuscou. Os apoiantes do Estado Islâmico com quem falei
ainda se referem a Osama bin Laden como “xeque Osama”, um título honorífico.
Mas o jihadismo evoluiu desde a época áurea da Al-Qaeda, entre 1998 e 2003, e
muitos jihadistas desprezam as prioridades do grupo e a sua actual liderança.
Bin Laden
encarava o seu terrorismo como o prólogo de um califado que não contava ver realizado
durante o seu tempo de vida. A sua organização era flexível e operava como uma
rede geograficamente dispersa de células autónomas. Pelo contrário, o Estado
Islâmico precisa de território para se legitimar e de uma estrutura
hierarquizada que o governe. (A sua burocracia divide-se nos ramos civil e
militar, e o seu território em províncias.)
A segunda
razão pela qual não o compreendemos tem que ver com uma campanha bem
intencionada mas desonesta que nega ao EI a sua natureza religiosa medieval.
Peter Bergen, que em 1997 fez a primeira entrevista a Bin Laden, intitulou o
seu primeiro livro de Holy War, Inc., em parte por
reconhecer Bin Laden como uma figura do mundo secular moderno. Bin Laden corporatizava o terrore fez dele um franchising.
Exigia concessões políticas específicas, tal como a retirada das forças
americanas da Arábia Saudita. Os seus soldados rasos moviam-se com confiança no
mundo moderno. Na véspera de morrer, Mohamed Atta [um dos atacantes do 11 de
Setembro] fez compras no Walmart e jantou na Pizza Hut.
É uma
tentação fazer encaixar no Estado Islâmico a observação de que os jihadistas
são pessoas seculares modernas, com preocupações políticas modernas, vestidas
com disfarces religiosos medievais. Na realidade, muito daquilo que o grupo faz
parece ilógico, a não ser que seja analisado à luz do seu empenho sincero e
cuidadosamente arquitectado em transportar a civilização para um ambiente do
século VII e da crença de que será o portador do apocalipse.
Os
porta-vozes mais articulados dessa intenção são os próprios responsáveis e
apoiantes do Estado Islâmico. Falam com gozo dos “modernos”. Em conversas,
insistem que não irão — nem podem — afastar-se dos conceitos de governação
integrados no islão pelo profeta Maomé e os seus primeiros seguidores. Falam
frequentemente em código e com alusões que parecem estranhas ou antiquadas a
não-muçulmanos e que se referem a tradições e textos específicos do islão dos
primórdios.
Para dar
um exemplo: em Setembro, o xeque Abu Muhammad al-Adnani, o principal porta-voz
do Estado Islâmico, apelou aos muçulmanos dos países ocidentais, como a França
e o Canadá, a encontrarem um infiel e “esmagarem a sua cabeça com uma pedra”,
envenenarem-no, atropelarem-no com um carro ou “destruírem as suas colheitas”.
Aos ouvidos ocidentais, os castigos de pendor bíblico — o apedrejamento e a
destruição de colheitas — justapõem-se estranhamente ao seu incitamento mais
modernizado de homicídio com um veículo. (E como se pretendesse mostrar que
pode aterrorizar usando apenas o imaginário, Adnani chamou o secretário de
Estado norte-americano, John Kerry, “ancião não circuncidado”.)
Mas Adnani
não estava a dizer apenas inutilidades. O seu discurso estava entrelaçado de
fundamentos jurídicos e teológicos, e o seu apelo à destruição de colheitas
ecoa ordens de Maomé para que se deixasse os poços de água e as colheitas dos
inimigos em paz — a não ser que os exércitos do islão se encontrassem numa
posição defensiva, e nesse caso os muçulmanos nas terras dos kuffar, ou infiéis, deveriam ser impiedosos e
envenenar à vontade.
A
realidade é que o Estado Islâmico é islâmico. Muito islâmico. Sim, tem atraído
psicopatas e pessoas à procura de aventura, saídos sobretudo das populações
marginalizadas do Médio Oriente e da Europa. Mas a religião pregada pelos seus
mais fervorosos seguidores vem de uma interpretação coerente do islão.
Praticamente
todas as grandes decisões e leis promulgadas pelo Estado Islâmico aderem ao que
chama — na sua imprensa e nas suas declarações, nos seus painéis informativos,
matrículas, material de escritório e moedas — “metodologia profética”, o
que significa seguir rigorosamente a profecia e o exemplo de Maomé. Os
muçulmanos podem rejeitar o Estado Islâmico; quase todos fazem-no. Mas fingir
que não é verdadeiramente um grupo religioso e milenar, com uma teologia que
tem de ser compreendida para ser combatida, já levou os Estados Unidos a
subestimá-lo e a apoiar esquemas tontos para o debelar. Temos de entender a
genealogia intelectual do Estado Islâmico se queremos uma resposta que não o
fortaleça ainda mais mas que o ajude a auto-imular-se pelo seu próprio excesso
de zelo.
I. Devoção
Em Novembro, o Estado Islâmico publicou um vídeo tipo info-comercial a ligar as suas origens a Bin Laden. Reconheceu Abu Mussab al-Zarqawi, o líder brutal da Al-Qaeda no Iraque entre 2003 até à sua morte, em 2006, como um progenitor mais directo, seguido sequencialmente por outros líderes guerrilheiros antes de chegar a Baghdadi, o califa. Uma omissão assinalável: o sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, o cirurgião oftalmológico egípcio que actualmente lidera a Al-Qaeda. Zawahiri não jurou obediência a Baghdadi e é cada vez mais odiado pelos seus colegas jihadistas. Para o seu isolamento, não ajuda a sua falta de carisma; nos vídeos parece sempre estar aborrecido. Mas a separação entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico há muito que vem sendo fabricada e ajuda, pelo menos em parte, a explicar os excessos sanguinários do EI.
Em Novembro, o Estado Islâmico publicou um vídeo tipo info-comercial a ligar as suas origens a Bin Laden. Reconheceu Abu Mussab al-Zarqawi, o líder brutal da Al-Qaeda no Iraque entre 2003 até à sua morte, em 2006, como um progenitor mais directo, seguido sequencialmente por outros líderes guerrilheiros antes de chegar a Baghdadi, o califa. Uma omissão assinalável: o sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, o cirurgião oftalmológico egípcio que actualmente lidera a Al-Qaeda. Zawahiri não jurou obediência a Baghdadi e é cada vez mais odiado pelos seus colegas jihadistas. Para o seu isolamento, não ajuda a sua falta de carisma; nos vídeos parece sempre estar aborrecido. Mas a separação entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico há muito que vem sendo fabricada e ajuda, pelo menos em parte, a explicar os excessos sanguinários do EI.
O
companheiro de isolamento de Zawahiri é um religioso jordano chamado Abu
Muhammad al-Maqdisi, de 55 anos, que será o arquitecto intelectual da Al-Qaeda
e que é o mais importante jihadista desconhecido do público americano. Maqdisi
e o EI estão de acordo na maior parte das questões doutrinárias. Ambos se
identificam com a ala jihadista de um ramo do sunismo chamado salafismo, do
árabe al salaf al salih, os “fundadores devotos”. Ou
seja, o próprio Maomé e os seus primeiros seguidores, que os salafistas honram
e seguem como modelo de todo e qualquer comportamento, incluindo a guerra, as
vestes, a vida familiar, até os cuidados com os dentes.
Maqdisi
ensinou Zarqawi, que partiu para a guerra no Iraque com os seus conselhos em
mente. Mas, com o tempo, Zarqawi excedeu o fanatismo do seu mestre e foi
criticado por ele. Isto devido ao seu gosto por espectáculos sanguinários — e,
do ponto de vista doutrinário, o seu ódio aos outros muçulmanos, a ponto de os
excomungar e matar. No islão, a prática do takfir, ou excomunhão, é
teologicamente perigosa. “Se um homem diz ao seu irmão ‘és um infiel’, então um
deles está certo”, diz o profeta. Se o acusador estiver errado, ele próprio
cometeu apostasia ao fazer uma falsa acusação. O castigo da apostasia é a
morte. Zarqawi alargou sem temor o tipo de comportamentos que tornam os
muçulmanos infiéis.
Maqdisi
escreveu ao seu antigo discípulo dizendo-lhe que precisava de ser mais
cauteloso e “não fazer proclamações cegas de takfir”, ou “proclamar as
pessoas como apóstatas devido aos seus pecados”. A diferença entre um apóstata
e um pecador pode parecer subtil, mas é um ponto fundamental da divergência
entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico.
Negar a
santidade do Corão ou as profecias de Maomé é claramente uma apostasia. Mas
Zarqawi e os seus companheiros consideram que muitas outras acções podem
afastar um muçulmano do islão. Estas incluem, em alguns casos, vender álcool ou
drogas, usar roupas ocidentais ou rapar a barba, votar em eleições — mesmo se
for num candidato muçulmano — ou ser-se laxista na acusação de apostasia. Ser
xiita, como são a maioria dos árabes iraquianos, também encaixa nos critérios,
porque o Estado Islâmico encara o xiismo como uma inovação e inovar no Corão é
negar a sua perfeição inicial. (O Estado Islâmico defende que algumas práticas
comuns dos xiitas, como a adoração em alguns túmulos de imãs e a autoflagelação
pública, não têm base no Corão nem no exemplo do profeta.) Isto significa que
cerca de 200 milhões de xiitas estão marcados para morrer. Tal como os chefes
de Estado de todos os países muçulmanos, que elevaram as leis feitas pelos
homens acima dasharia,
concorrendo ao cargo ou aprovando leis que não foram feitas por Deus.
Seguindo a
doutrina takfiri, o Estado Islâmico
compromete-se a purificar o mundo matando um número elevado de pessoas. A falta
de objectividade das notícias vindas do seu território torna desconhecida a
verdadeira extensão da chacina, mas os comentários feitos nas redes sociais na
região sugerem que as execuções individuais acontecem mais ou menos
continuamente, e as execuções em massa são separadas por poucas semanas. Os
“apóstatas” muçulmanos são as vítimas mais comuns. Isentos das execuções
sumárias estão os cristãos que não resistirem ao novo governo. Baghdadi
permite-lhes viver, desde que paguem uma taxa especial, conhecida como jizya,
e reconheçam a sua subjugação. A autoridade corânica para esta prática não é
questionada.
As guerras religiosas na Europa já
acabaram há séculos e desde então que os homens deixaram de morrer em larga
escala devido a obscuras disputas teológicas. Daí talvez a incredulidade e a
negação com que os ocidentais receberam as notícias das práticas e da teologia
do Estado Islâmico. Muitos recusam-se a acreditar que este grupo é tão
religioso como diz ser, ou tão antiquado e apocalíptico como as suas acções
sugerem.
O
cepticismo é compreensível. No passado, os ocidentais que acusavam os
muçulmanos de seguir cegamente as escrituras antigas eram criticados por
académicos — nomeadamente o falecido Edward Said — que afirmavam que chamar
antiquados aos muçulmanos era geralmente apenas mais uma maneira de os
denegrir. Em vez disso, defendiam estes académicos, olhe-se para as condições
em que estas ideologias se formam — má governação, mudanças de costumes, a
humilhação de viver em terras que apenas são valorizadas pelo seu petróleo.
Sem o reconhecimento
destes factores, nenhuma explicação para o crescimento do Estado Islâmico
ficará completa. Mas se nos focarmos apenas neles e excluirmos a ideologia
estamos a incorrer noutro tipo de desvio ocidental: o de que se a ideologia
religiosa não quer dizer muito em Washington ou Berlim, seguramente será
igualmente irrelevante em Raqqa ou Mossul. Quando um carrasco com uma máscara
diz Allahu Akbar enquanto
decapita um apóstata, às vezes fá-lo por razões religiosas.
Muitas
organizações religiosas muçulmanas não radicais foram ao ponto de dizer que o
Estado Islâmico é, na verdade, não islâmico. Claro que é reconfortante saber
que a vasta maioria dos muçulmanos não tem qualquer interesse em substituir os
filmes de Hollywood por execuções públicas como entretenimento nocturno. Mas,
como diz o académico de Princeton Bernard Haykel, o grande especialista na
teologia do grupo, os muçulmanos que dizem que o Estado Islâmico não é islâmico
estão “envergonhados e a ser politicamente correctos, com uma perspectiva cor-de-rosa
da sua própria religião”, que negligencia “o que histórica e juridicamente a
sua religião exigiu”. Muitas das negações da natureza religiosa do Estado
Islâmico, afirma ele, estão enraizadas numa “tradição cristã de um disparatado
diálogo inter-religioso”.
Todos os
académicos a quem fiz perguntas sobre o EI me mandaram falar com Haykel. Na voz
que sai da sua barbicha mefistofélica há um ligeiro sotaque estrangeiro de uma
localização indefinida.
Segundo
Haykel, as fileiras do Estado Islâmico estão profundamente impregnadas de
fervor religioso. Há citações do Corão por toda a parte. “Mesmo os soldados
rasos veiculam estas coisas constantemente”, diz Haykel. “Olham para as câmaras
e repetem as suas doutrinas básicas como uma fórmula, e fazem-no a toda a
hora.” Encara a afirmação de que o Estado Islâmico distorceu os textos do islão
como uma coisa ridícula, apenas justificada por uma enorme ignorância. “As
pessoas querem absolver o islão”, comenta. “É aquele mantra ‘o islão é uma
religião de paz’. Como se houvesse uma coisa como ‘o islão’! É aquilo que os
muçulmanos fazem e a forma como interpretam os seus textos.” Esses textos são
partilhados por todos os muçulmanos sunitas, não apenas pelo Estado Islâmico.
“E estes tipos têm tanta legitimidade como quaisquer outros.”
Todos os
muçulmanos reconhecem que as primeiras conquistas de Maomé não foram limpas e
que as leis da guerra transmitidas no Corão e nas narrativas sobre a governação
do profeta foram calibradas para encaixar numa época turbulenta e violenta.
Pelas estimativas de Haykel, os combatentes do EI retrocederam ao islão inicial
e estão a reproduzir fielmente as suas regras de guerra. Este comportamento
inclui uma série de práticas que os muçulmanos modernos tendencialmente se
recusam a admitir que são parte integrante dos textos sagrados. “A escravatura,
a crucificação e as decapitações não são uma coisa que uns amalucados
[jihadistas] escolheram selectivamente no meio de uma tradição medieval”,
comenta. Os combatentes do EI “mergulharam numa tradição medieval e estão a
querer trazê-la inteira para a actualidade”.
O Corão
refere especificamente que a crucificação é um dos poucos castigos permitidos
aos inimigos do islão. A taxa aos cristãos encontra um apoio claro no Surah
al-Tawbah, o nono capítulo do Corão, que encoraja os muçulmanos a
combater os cristãos e judeus “até que estes paguem a jizya com uma submissão voluntária, e se
sintam eles próprios subjugados”. O profeta, que todos os muçulmanos consideram
exemplar, impôs estas regras e possuía escravos.
Os líderes
do Estado Islâmico consideram ser seu estrito dever copiar Maomé e reavivaram
tradições que há centenas de anos estavam adormecidas. “O que é espantoso neles
não é só o seu literalismo, mas também a seriedade com que lêem estes textos”,
diz Haykel. “Há uma seriedade obsessiva e constante que os muçulmanos
normalmente não têm.”
Até ao
aparecimento do Estado Islâmico, nenhum grupo nos últimos séculos tentara uma
fidelidade tão radical ao modelo profético para além dos wahhabitas da Arábia do século XVIII.
Conquistaram a maior parte do que é agora a Arábia Saudita, e as suas práticas
estritas sobreviveram ali numa versão diluída da sharia. Mas Haykel aponta para uma distinção
importante entre os grupos: “Oswahhabitas não eram exuberantes na sua
violência.” Estavam rodeados de muçulmanos e conquistaram terras que já eram
islâmicas. “O ISIS, pelo contrário, está realmente a querer reavivar o período
inicial.” Os primeiros muçulmanos estavam rodeados de não muçulmanos, e o
Estado Islâmico, devido às suas tendências takfiri, considera-se na
mesma situação.
Se a
Al-Qaeda quis recuperar a escravatura, nunca o disse. E porque haveria de
querer? O silêncio sobre a escravatura reflecte provavelmente um pensamento
estratégico, com a necessidade de atrair a simpatia popular: quando o EI
começou a escravizar pessoas, até alguns dos seus apoiantes se retraíram. Ainda
assim, o califado continuou a abraçar a escravatura e a crucificação sem se
desculpabilizar. “Vamos conquistar a vossa Roma, quebrar os vossos crucifixos e
escravizar as vossas mulheres”, prometeu Adnani, o porta-voz, numa das suas
ameaças periódicas ao Ocidente. “Se não o fizermos a tempo, então os nossos
filhos e netos o farão e venderão os vossos filhos como escravos no mercado de
escravos.”
Em
Outubro, a Dabiq, a revista do EI,
publicou A Ressuscitação da Escravatura Antes da
Hora, um artigo que questionava se os yazidis (membros de uma seita antiga curdófona
que foi buscar alguns elementos ao islão e que foi atacada por forças do EI no
Norte do Iraque) são muçulmanos seculares, e portanto marcados para a morte, ou
meros pagãos e por isso prontos para serem escravizados. Um grupo de estudo de
académicos do EI reuniu-se, sob ordens do governo, para resolver a questão. Se
são pagãos, escreveu o autor anónimo do artigo, “as mulheres e crianças yazidi, [devem ser] divididas de acordo com a sharia entre os que combatem pelo Estado
Islâmico que participaram nas operações de Sinjar [no Norte do Iraque]...
Escravizar as famílias dos kuffar [infiéis] e tomar as suas mulheres
como concubinas é um dos aspectos determinados pela sharia e,
se alguém o negar ou gracejar, estará a negar ou gracejar dos versículos do
Corão e das palavras do profeta... e por isso a ser apóstata do islão”.
II. Território
Calcula-se que dezenas de milhares de muçulmanos estrangeiros terão emigrado para o Estado Islâmico. Houve recrutamentos a partir de França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha, Holanda, Austrália, Indonésia, Estados Unidos e outros locais importantes. Muitos foram para lutar e muitos tencionam morrer.
Calcula-se que dezenas de milhares de muçulmanos estrangeiros terão emigrado para o Estado Islâmico. Houve recrutamentos a partir de França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha, Holanda, Austrália, Indonésia, Estados Unidos e outros locais importantes. Muitos foram para lutar e muitos tencionam morrer.
Peter R.
Neumann, professor no King’s College em Londres, disse-me que as comunicações onlinetêm sido essenciais para espalhar a
propaganda e garantir que os recém-chegados sabem em que acreditar. O
recrutamento feito pela Internet também tem alargado a demografia da comunidade
de jihadistas, permitindo que muçulmanas conservadoras — fisicamente isoladas
nas suas casas — cheguem a recrutas, se radicalizem e arranjem transporte para
a Síria. Apelando a ambos os géneros, o EI espera construir uma sociedade
completa.
Em
Novembro, fui à Austrália para me encontrar com Musa Cerantonio, um homem de 30
anos que Neumann e outros investigadores identificaram como uma das mais
importantes “autoridades espirituais emergentes” na condução de estrangeiros ao
Estado Islâmico. Durante três anos era tele-envagelista na Iqraa TV do Cairo,
mas saiu depois de a estação ter objectado aos seus apelos frequentes à criação
de um califado. Agora prega no Facebook e no Twitter.
Cerantonio
— um homem grande e amigável com uma atitude livresca — diz que empalidece
perante os vídeos das decapitações. Odeia ver a violência, ainda que os
apoiantes do Estado Islâmico sejam obrigados a apoiá-la. (E, o que é
controverso entre jihadistas, repudia os bombardeamentos suicidas, na medida em
que Deus proíbe o suicídio; difere do EI também em mais alguns pontos.) Tem o
tipo de barba que usam alguns fãs mais crescidos do Senhor
dos Anéis e a sua
obsessão com o apocaliptismo islâmico soa familiar. Parece estar a viver um
drama que visto de fora, sob a perspectiva de um estrangeiro, se assemelha a um
romance de fantasia medieval, só que com sangue a sério.
Em Junho
passado, Cerantonio e a mulher tentaram emigrar — não disse para onde (“é
ilegal ir para a Síria”, afirmou cautelosamente) — mas foram apanhados no
caminho, nas Filipinas, e deportados para a Austrália, que criminalizou as
tentativas de aderir ou viajar para o Estado Islâmico e por isso lhe confiscou
o passaporte. Está preso em Melbourne, onde é conhecido das autoridades locais.
Se for apanhado a facilitar a movimentação de indivíduos para o EI, será preso.
Mas para já continua em liberdade — um ideólogo que tecnicamente não está
filiado mas que ainda assim, para os outros jihadistas, fala com autoridade
sobre a doutrina do Estado Islâmico.
Encontrámo-nos
para almoçar em Footscray, um subúrbio densamente povoado e multicultural de
Melbourne, onde está a sede do Lonely Planet, a editora de guias de viagens.
Cerantonio cresceu ali numa família meio irlandesa, meio italiana, da Calábria.
Numa rua normal encontramos restaurantes africanos, lojas vietnamitas e jovens
árabes a andar de uniforme salafista: barba comprida, camisa longa e calças
pelo meio da canela.
Cerantonio
explica a alegria que sentiu quando Bahgdadi foi declarado califa, a 29 de
Junho — e a súbita atracção magnética que a Mesopotâmia começou a exercer sobre
ele e os seus amigos. “Estava num hotel [nas Filipinas] e vi a declaração pela
televisão”, conta. “E fiquei simplesmente pasmado, do tipo: ‘O que é que estou
a fazer fechado neste maldito quarto?’”
O último
califado foi o Império Otomano, que conheceu o seu apogeu no século XVI e que
depois entrou num longo declínio, até o fundador da República da Turquia,
Mustafa Kemal Atatürk, acabar com ele de vez, em 1924. Mas Cerantonio, como
muitos apoiantes do Estado Islâmico, não reconhece legitimidade a esse
califado, porque não instaurou totalmente e lei islâmica, que exige
apedrejamentos e escravatura e amputações, e porque os califas não descendiam
directamente da tribo do profeta, a Quraysh.
Baghdadi
falou detalhadamente da importância do califado no seu sermão em Mossul. Disse
que para reavivar a instituição do califado — que há mil anos que não existia,
excepto de nome — era uma obrigação. Ele e os seus fiéis foram “céleres a
declarar o califado e a colocar um imã” na sua chefia, diz. “Isto é um dever
dos muçulmanos — um dever que durante séculos se perdeu... Os muçulmanos pecam
ao perdê-lo e devem sempre procurar restabelecê-lo.” Como Bin Laden antes dele,
Baghdadi fala com floreados, com referências frequentes às escrituras e com
controlo sobre a retórica clássica. Ao contrário de Bin Laden, e desses falsos
califas do Império Otomano, ele é Quraysh.
O califado, diz-me Cerantonio, não
é apenas uma entidade política, mas também um veículo de salvação. A propaganda
do EI noticia regularmente as declarações de baya’a (fidelidade) vindas de grupos
jihadistas de todo o mundo muçulmano. Cerantonio cita um ditado do profeta:
morrer sem prestar fidelidade é morrer jahil (ignorante) e por isso morrer “da
morte da descrença”. Os muçulmanos (e também, neste caso, os cristãos) imaginam
negociações entre Deus e as almas dos que morrem sem conhecer a verdadeira
religião — não são obviamente salvas nem definitivamente condenadas. Da mesma
forma, diz Cerantonio, um muçulmano que reconhece um Deus omnipotente e que
reza, mas que morre sem jurar fidelidade a um califa legítimo e descurando as
obrigações desse juramento, não tem uma vida totalmente islâmica. Refiro que
isto significa que a grande maioria dos muçulmanos ao longo da história, e
todos os que morreram entre 1924 e 2014, tiveram uma morte de descrença.
Cerantonio assentiu com firmeza. “Vou ao ponto de dizer que o islão foi
restabelecido” pelo califado.
Pergunto-lhe
sobre o seu próprio baya’a e ele rapidamente me corrige: “Eu não
disse que iria jurar fidelidade.” Segundo a lei australiana, recorda-me ele, é
ilegal prestar baya’a ao Estado Islâmico. “Mas concordo que
Baghdadi preenche os critérios”, continua. “Eu vou pestanejar para si, e você
depreende o que quiser.”
Ser califa
implica cumprir uma série de condições impostas pela lei islâmica — ser adulto
de ascendência quraysh; ter legitimidade
moral e integridade física e mental; e ter amr, ou autoridade. Este
último critério, diz Cerantonio, é o mais difícil de cumprir e requer que o
califa tenha território no qual possa exercer a lei islâmica. O EI de Baghdadi
conseguiu isso muito antes de 29 de Junho, diz Cerantonio, e assim que o fez,
um convertido ocidental que faz parte da hierarquia — descreve-o como “uma
espécie de líder” — começou a murmurar sobre a obrigação religiosa de declarar
um califado. Ele e outros falaram discretamente para os que estavam no poder,
dizendo-lhes que adiar isso por mais tempo seria pecaminoso.
Cerantonio
diz que apareceu uma facção preparada para combater o grupo de Baghdadi caso
este adiasse ainda mais. Prepararam uma carta para vários membros poderosos do
ISIS dando conta do seu desagrado pelo falhanço de nomear um califa, mas foram
apaziguados por Adnani, o porta-voz, que partilhou com eles um segredo: que o
califado já tinha sido declarado, muito antes do anúncio público. Eles tinham o
seu califa legítimo e nessa altura só havia uma opção: “Se ele é legítimo, é
preciso dar-lhe o baya’a”, afirma Cerantonio.
Depois do
sermão de Julho de Baghdadi, uma série de jihadistas começaram a chegar diariamente
à Síria com uma motivação renovada. Jürgen Todenhöfer, um autor alemão e antigo
político que visitou o Estado Islâmico em Dezembro, deu conta da chegada de cem
combatentes num centro de recrutamento na fronteira turca em apenas dois dias.
O seu relato, entre outros, sugere uma afluência constante de estrangeiros,
prontos para desistir de tudo na sua terra por um vislumbre do paraíso no pior
sítio do mundo.
Em Londres, uma semana antes do
meu almoço com Cerantonio, encontrei-me com três antigos membros de um grupo
islamista chamado Al Muhajiroun (Os Emigrantes): Anjem Choudary, Abu
Baraa e Abdul Muhid. Todos manifestaram o seu desejo de emigrar para o Estado
Islâmico, tal como já tinham feito muitos dos seus colegas, mas as autoridades
confiscaram os seus passaportes. Como Cerantonio, encaram o califado como o
único governo legítimo da Terra, embora nenhum tenha confessado ter já jurado
obediência. A principal razão pela qual quiseram encontrar-se comigo foi para
me explicar aquilo que o EI defende e como as suas políticas reflectem a lei de
Deus.
Choudary,
de 48 anos, é o antigo líder do grupo. Aparece frequentemente nas notícias por
cabo, porque é uma das poucas pessoas que os produtores podem agendar para uma
entrevista e que defenderá o EI a vociferar até que o microfone seja cortado.
No Reino Unido, tem fama de ser um opinativo desagradável, mas ele e os seus
discípulos acreditam sinceramente no Estado Islâmico e, em assuntos de
doutrina, falam com a mesma voz. Choudary e os outros destacam-se nos feeds dos residentes do EI no
Twitter, e Abu Baraa mantém um canal no YouTube para responder a perguntas
sobre a sharia.
Desde
Setembro que as autoridades têm investigado os três homens suspeitos de apoiar
o terrorismo. Por causa desta investigação, tiveram de se encontrar comigo em
separado: a comunicação entre eles violaria os termos da sua liberdade
condicional. Mas falar com eles foi como falar com uma única pessoa, com
máscaras diferentes. Choudary foi ter a uma loja de doces no subúrbio de
Ilford, no Leste de Londres. Estava bem vestido, com uma túnica azul que lhe
chegava praticamente aos tornozelos, e bebericava um Red Bull enquanto falava.
Antes do
califado, “talvez 85% da sharia estava ausente das nossas vidas”,
diz-me. “Estas leis estavam suspensas até termos o khilafa”
— um califado — “e agora temos um.” Sem um califado, por exemplo, vigilantes
individuais não são obrigados a amputar as mãos dos ladrões que apanham em
flagrante. Mas criando-o, esta lei, tal como um gigantesco corpo de outra
jurisprudência, despertará subitamente. Em teoria, todos os muçulmanos são
obrigados a emigrar para o país onde o califa está a aplicar estas leis. Um dos
estudantes premiados de Choudary, um convertido do hinduísmo chamado Abu
Rumaysah, fugiu da polícia e levou a sua família, de cinco pessoas, de Londres
para a Síria, em Novembro. No dia em que me encontrei com Choudary, Abu
Rumaysah tinha posto no Twitter uma fotografia de si próprio com uma
kalashnikov num braço e o seu filho recém-nascido no outro. Hashtag: #GenerationKhilafah.
O califa é
obrigado a implementar a sharia. Qualquer desvio
levará aqueles que lhe juraram fidelidade a informá-lo em privado do seu erro
e, em casos extremos, caso ele persista, a excomungá-lo e substituí-lo. (“Fui
contagiado com esta grande questão, contagiado com esta responsabilidade e é
uma responsabilidade pesada”, disse Baghdadi no seu sermão.) Em troca, o califa
exige obediência — e aqueles que insistem em apoiar governos não muçulmanos,
depois de serem avisados e educados sobre o seu pecado, são considerados
apóstatas.
Choudary
afirma que a sharia tem sido mal compreendida por
ser aplicada apenas parcialmente por regimes como a Arábia Saudita, apesar de
decapitar assassinos e cortar as mãos a ladrões. “O problema”, explica, “é que
quando lugares como a Arábia Saudita apenas aplicam o código penal, e não
providenciam a justiça económica e social da sharia — o pacote completo —, estão
apenas a gerar ódio contra a sharia.” O pacote completo,
diz, incluiria habitação gratuita, alimentação e roupas para todos, sendo que
qualquer pessoa que quiser enriquecer através do trabalho pode, evidentemente,
fazê-lo.
Abdul
Muhdi, de 32 anos, segue a mesma linha. Chega ao restaurante local onde
marcámos encontro vestido como um mujahedin (combatente) puro: barba
desalinhada, boné afegão, uma carteira pendurada na roupa presa ao que parece
ser um coldre. Quando nos sentamos, mostra-se desejoso de falar sobre o apoio
social. O Estado Islâmico pode ter castigos de estilo medieval para crimes morais
(chicotadas por embriaguez ou fornicação, apedrejamento para adultério), mas o
seu programa de assistência social é, no mínimo em alguns aspectos,
progressista. A assistência social é gratuita, declara. (“Não é também gratuita
no Reino Unido?”, pergunto-lhe. “Na realidade não”, responde. “Alguns aspectos
não estão cobertos, como a visão.”) Esta assistência social não é uma política
escolhida pelo EI, adianta. É uma política obrigatória inerente à lei de Deus.
III. O Apocalipse
Todos os muçulmanos reconhecem que Deus é o único que sabe o
futuro. Mas também concordam que nos ofereceu um vislumbre, no Corão e nas
palavras do profeta. O Estado Islâmico difere de praticamente todas as outras
correntes actuais do movimento jihadista ao acreditar que o futuro está traçado
nas escrituras divinas e é a sua personagem central. É aqui que o EI se
distingue claramente dos seus antecessores, e é mais claro quanto à natureza
religiosa da sua missão.
Em traços
gerais, a Al-Qaeda comporta-se como um movimento político clandestino, tendo
sempre em vista objectivos globais — a expulsão dos não muçulmanos da península
Arábica, a abolição do Estado de Israel, o fim ao apoio às ditaduras nas terras
muçulmanas. O EI tem a sua quota-parte de preocupações mundanas (incluindo, nas
terras onde governa, recolher o lixo e manter a água a correr), mas o Fim dos
Tempos é o leitmotiv da sua propaganda. Bin Laden raramente
mencionou o apocalipse e quando o fez deu a entender que quando chegasse esse
momento de castigo divino ele estaria morto há muito tempo. “Bin Laden e
Zawahiri são de famílias sunitas da elite que olhavam com sobranceria para este
tipo de especulação e achavam que era uma coisa do povo”, diz Will McCants do
Brookings Institution e que está a escrever um livro sobre o pensamento
apocalíptico do EI.
Durante os
últimos anos da ocupação americana do Iraque, os fundadores do EI viam, pelo
contrário, sinais do fim dos tempos por toda a parte. Anteciparam que, no prazo
de um ano, chegaria o Mahdi, uma figura messiânica que levaria os muçulmanos à
vitória antes do fim do mundo. McCants diz que uma responsável islamista importante
foi ter com Bin Laden em 2008 para o avisar de que o grupo estava a ser
liderado por homens que “falavam a toda a hora do Mahdi e que tomavam decisões
estratégicas” baseadas na data em que eles pensavam que o Mahdi iria chegar. “A
Al-Qaeda teve de escrever-lhes a dizer: ‘Parem com isso’.”
Para
alguns verdadeiros crentes — o tipo de crentes que anseia por batalhas épicas
do bem contra o mal —, as visões de banhos de sangue do apocalipse preenchem
necessidades psicológicas profundas. De todos os apoiantes do EI que conheci,
Cerantonio, o australiano, era aquele que mostrava mais interesse no apocalipse
e de como seriam os dias que restavam ao EI — e ao mundo. Uma parte dessa
previsão é nova para ele e ainda não tem o estatuto de doutrina. Mas outra
parte baseia-se em fontes sunitas mainstream e aparecem em toda a propaganda do EI.
Esta inclui a crença de que haverá apenas 12 califas legítimos e que Baghdadi é
o oitavo; que os exércitos de Roma se juntarão para combater contra os
exércitos do islão no Norte da Síria; e que o último confronto do islão com um
anti-Messias será em Jerusalém depois de uma nova conquista islâmica.
O EI
atribuiu uma grande importância à cidade síria de Dabiq, perto de Alepo. Deu o
seu nome à sua revista de propaganda e celebrou intensamente quando (a grande
custo) conquistou os planaltos sem valor estratégico de Dabiq. O profeta terá
dito que será aqui que os exércitos de Roma irão acampar. Os exércitos do islão
encontrar-se-ão com eles, e Dabiq será a Waterloo de Roma, ou a sua Antietam [a
batalha mais sangrenta da guerra civil americana].
“Dabiq é
basicamente uma zona de cultivo agrícola”, twittou recentemente um apoiante do
EI. “Conseguimos imaginar grandes batalhas ali.” A propaganda do EI fala com
ansiedade deste acontecimento e dá a entender que ele chegará em breve. A
revista cita Zarqawi: “A fagulha foi acesa aqui no Iraque e a sua chama
continuará a intensificar-se... até incendiar os exércitos dos cruzados em
Dabiq.” Um vídeo recente mostra imagens de filmes de guerra de Hollywood
passados na época medieval — talvez porque muitas das profecias referem que os
exércitos estarão montados a cavalo e a carregar armas antigas.
Agora que tomou Dabiq, o EI espera
a chegada do exército inimigo ali, cuja derrota vai iniciar a contagem decrescente
para o apocalipse. Os media ocidentais deixam escapar
frequentemente as referências a Dabiq feitas nos vídeos do EI e focam-se em vez
disso nas cenas vívidas das decapitações. “Aqui estamos nós a enterrar o
primeiro cruzado americano em Dabiq, esperando ansiosamente que chegue o resto
dos vossos exércitos”, dizia um carrasco de máscara num vídeo publicado em
Novembro, onde se mostrava a cabeça decapitada de Peter (Abdul Rahman) Kassig,
o assistente humanitário que estava sequestrado há mais de um ano. Durante os
confrontos no Iraque em Dezembro, depois de mujahedin terem dito (talvez incorrectamente)
que viram soldados americanos em combate, as contas de Twitter do EI irromperam
em regozijo, como anfitriões que esperam com excesso de entusiasmo os
convidados para uma festa.
A
narrativa profética que prevê a batalha de Dabiq refere-se ao inimigo como
Roma. Quem é “Roma”, agora que o Papa não tem exército, é um assunto em debate.
Cerantonio sustenta que Roma significa o Império Romano do Oriente, que tinha a
sua capital naquela que agora é Istambul. Devemos pensar em Roma como a
República da Turquia — a mesma república que acabou com o último califado, há
90 anos. Outras fontes do EI sugerem que Roma pode significar qualquer exército
de infiéis e que os americanos encaixam perfeitamente nessa designação.
Depois
desta batalha de Dabiq, diz Cerantonio, o califado irá expandir-se e tomar
Istambul. Há quem acredite que depois cobrirá a Terra inteira, mas Cerantonio
sugere que esta vaga possa nunca passar para além do Bósforo. Um anti-Messias,
conhecido na literatura pós-apocalíptica como Dajjal, virá da região de
Khorasan, no Leste do Irão, e matará muitos combatentes do califado, até
ficarem apenas cinco mil, encurralados em Jerusalém. E no momento em que Dajjal
estiver prestes a acabar com eles, Jesus — o segundo profeta mais venerado no
islão — voltará à Terra, expulsará Dajjal e conduzirá os muçulmanos à vitória.
“Só Deus
sabe” se os exércitos do EI serão avisados, diz Cerantonio. Mas ele tem
esperança que sim. “O profeta disse que um dos sinais da chegada iminente do
Final dos Tempos é que as pessoas deixam de falar do Final dos Tempos durante
um tempo”, diz. “Se for agora às mesquitas, verá que os pregadores estão
calados sobre este assunto.” Sob este prisma, os reveses do EI não têm qualquer
significado, uma vez que de qualquer forma Deus tinha contemplado a sua quase
destruição. O Estado islâmico tem os seus melhores e piores dias pela frente.
IV. O combate
O purismo ideológico do Estado Islâmico tem uma virtude:
permite-nos prever algumas das suas acções. Osama bin Laden raramente foi
previsível. Terminou a sua primeira entrevista televisiva de forma encriptada.
Peter Arnett, da CNN, perguntou-lhe: “Quais são os seus planos para o futuro?”
e Bin Laden respondeu: “Irá vê-los e ouvir falar deles nos media, se Deus quiser.” Pelo contrário, o EI fala abertamente dos seus
planos — não de todos, mas o suficiente para que, se ouvirmos com atenção, se
possa deduzir como projecta governar e expandir-se.
Em Londres,
Choudary e os seus discípulos fizeram descrições detalhadas de como o EI deve
conduzir a sua política externa, agora que é um califado. Já assumiu aquilo a
que a lei islâmica chama “jihad ofensiva”, a expansão forçada para países
governados por não muçulmanos. “Estamos só a defender-nos”, afirma Choudary;
sem um califado, a jihad ofensiva é apenas um conceito
inaplicável. Mas fazer a guerra para expandir o califado é um dever fundamental
do califa.
Choudary
refere que as leis da guerra segundo as quais o EI se rege são de misericórdia
e não de brutalidade. Diz que o Estado tem a obrigação de aterrorizar os seus
inimigos — uma ordem sagrada para lhes pregar sustos de morte com decapitações
e crucificações e escravatura de mulheres e crianças — porque fazê-lo acelera a
vitória e evita o conflito prolongado.
O seu
colega Abu Baraa explica que a lei islâmica apenas permite tratados de paz
temporários, não mais duradouros do que uma década. Da mesma forma, aceitar uma
fronteira é um anátema, tal como disse o profeta e é ecoado pelos vídeos de
propaganda. Se o califa consente um tratado de paz prolongado ou uma fronteira
permanente, estará a errar. Os tratados de paz temporários são renováveis, mas
poderão não ser aplicados a todos os inimigos de uma só vez: o califa tem de
lançar ajihad pelo menos uma vez por ano. Não pode
descansar, ou estará a pecar.
Uma das
comparações com o Estado Islâmico são os khmer vermelhos, que mataram cerca de um
terço da população do Cambodja. Mas o Khmer Vermelho ocupou o assento do
Cambodja na ONU. “Isso não é permitido”, comenta Abu Baraa. “Enviar um
embaixador para a ONU é reconhecer uma outra autoridade que não Deus.” Este
tipo de diplomacia é shirk, ou politeísmo,
argumenta, e seria justificação para declarar o califa herege e substituí-lo.
Mesmo o apoio ao califado por via democrática, através de eleições, por
exemplo, seria shirk.
É difícil
dizer quão prejudicado o EI será pelo seu radicalismo. O sistema internacional
moderno, nascido em 1648 do tratado de paz de Vestefália, assenta na vontade de
cada Estado em reconhecer fronteiras, por muito que estejam relutantes. Para o
EI, esse reconhecimento é ideologicamente suicida. Outros grupos islâmicos,
como a Irmandade Muçulmana e o Hamas, sucumbiram aos princípios da democracia e
à possibilidade de um convite para a comunidade das nações, completado com um
assento na ONU. A negociação e a cedência também funcionaram, algumas vezes,
com ostaliban. (Sob
o regime taliban, o Afeganistão trocou
embaixadores com a Arábia Saudita, Paquistão e os Emirados Árabes Unidos, um
gesto que invalidou a autoridade dos taliban aos olhos do Estado Islâmico.) Para o
ISIS, estas não são opções, mas actos de apostasia.
Os Estados
Unidos e os seus aliados reagiram ao Estado Islâmico com atraso e aparente estupefacção.
As ambições e a estratégia eram evidentes nos primeiros discursos e nas pistas
deixadas nas redes sociais já desde 2011, quando era apenas um dos muitos
grupos terroristas na Síria e no Iraque e ainda não tinha cometido atrocidades
em massa. Adnani, o porta-voz, disse então aos seguidores do grupo que a
ambição era “restaurar o califado islâmico” e evocou o apocalipse, afirmando:
“Só restam alguns dias.” Baghdadi já se tinha apresentado como “comandante dos
fiéis”, um título normalmente reservado aos califas, em 2011. Em Abril de 2013,
Adnani declarou que o movimento estava “pronto para redesenhar o mundo segundo
a metodologia profética do califado”. Em Agosto de 2013, afirmou: “O nosso
objectivo é criar um estado islâmico que não reconheça fronteiras, segundo a
metodologia profética.” Nessa altura, o grupo tinha já tomado Raqqa, uma
capital provincial da Síria de cerca de 500 mil pessoas, e estava a atrair
números significativos de combatentes estrangeiros que tinham ouvido a sua
mensagem.
Se tivéssemos
identificado mais cedo as intenções do EI e percebido que o vazio no Iraque e
na Síria lhe daria amplo espaço para as concretizar, teríamos no mínimo forçado
o Iraque a fortalecer a sua fronteira com a Síria e feito acordos
preventivamente com os seus líderes sunitas. Isso teria no mínimo evitado o
efeito da propaganda electrizante criado pela declaração de um califado logo a
seguir à conquista da segunda cidade iraquiana. Mas, há pouco mais de um ano,
Obama declarou à revista New Yorker que considerava o ISIS o parceiro mais
fraco da Al-Qaeda. “Não basta uma equipa juvenil vestir o equipamento dos
Lakers para se tornar um Kobe Bryant”, disse o Presidente.
A nossa incapacidade de perceber a
diferença entre o EI e a Al-Qaeda, e as diferenças essenciais entre os dois,
levou a decisões perigosas. No Outono passado, para dar só um exemplo, o
Governo americano aprovou um plano desesperado para salvar a vida a Peter
Kassig. O plano facilitava — e até exigia — a interacção entre algumas das
figuras fundadoras do EI e da Al-Qaeda, e dificilmente poderia ter sido mais
debilmente improvisado.
Nele
sugeria-se a aproximação de Abu Muhammad al-Maqdisi, mentor de Zarqawi e um
nobre da Al-Qaeda, a Turki al-Binali, o principal ideólogo do EI e antigo aluno
de Maqdisi, apesar de estarem afastados devido às críticas de Maqdisi ao Estado
Islâmico. Maqdisi já tinha apelado ao EI por clemência para Alan Henning, o
britânico que entrou na Síria para prestar ajuda a crianças. Em Dezembro, o The
Guardian noticiou que
o Governo americano, através de um intermediário, pedira a Maqdisi que
intercedesse por Kassig junto do EI.
Maqdisi
vivia então livremente na Jordânia, mas tinha ficado proibido de comunicar com
terroristas no estrangeiro e estava a ser vigiado de perto. Depois de a
Jordânia ter dado autorização aos EUA para apresentar Maqdisi a Binali, Maqdisi
comprou um telefone com dinheiro americano e foi autorizado a comunicar com o
seu antigo aluno durante alguns dias, até o Governo jordano acabar com as
conversas e as usar como pretexto para o prender. Uns dias depois, a cabeça
decapitada de Kassig aparecia num vídeo da Dabiq.
Maqdisi é
frequentemente gozado no Twitter pelos fãs do EI, e a Al-Qaeda é também mal
vista por se recusar a reconhecer o califado. Cole Bunzel, um académico que
estuda a ideologia do Estado Islâmico, leu a opinião de Maqdisi sobre a
situação de Henning e achou que ela iria acelerar a sua morte, tal como a de
outros reféns. “Se eu estivesse preso pelo Estado Islâmico e Maqdisi dissesse
que eu não deveria ser morto, diria adeus à vida”, diz-me Bunzel.
A morte de
Kassig foi trágica, mas o êxito do plano teria sido uma tragédia ainda maior.
Uma reconciliação entre Maqdisi e Binali teria começado a sarar a principal
discórdia entre as duas maiores organizações jihadistas do mundo. É possível
que o governo apenas quisesse atrair Binali para obter informação secreta ou
para ser assassinado. (Várias tentativas para que o FBI comentasse falharam.)
Ainda assim, a decisão de juntar os dois maiores antagonistas dos Estados
Unidos revela uma surpreendente falta de senso.
Envergonhados
pela nossa indiferença inicial, estamos agora a conhecer o Estado Islâmico
através dos combates no Curdistão e no Iraque, com ataques aéreos regulares.
Essa estratégia não desalojou o Estado Islâmico de nenhum dos seus territórios
principais, apesar de ter evitado ataques directos a Bagdad e Erbil massacrando
xiitas e curdos.
Alguns
observadores pediram uma resposta mais forte, incluindo algumas das vozes
previsíveis da direita intervencionista (Max Boot, Frederick Kagan), que
apelaram ao envio de dezenas de milhares de soldados americanos. Não se deve
afastar demasiado depressa este cenário: uma organização genocida está à porta
de casa das suas vítimas e diariamente comete atrocidades no território que já
controla.
Uma das
formas de quebrar o feitiço do EI nos seus seguidores seria superá-lo
militarmente e ocupar as partes da Síria e do Iraque que estão agora sob
domínio do califado. A Al-Qaeda não pode ser erradicada porque consegue
sobreviver, como uma barata, ficando na clandestinidade. O Estado Islâmico não.
Se perder o poder nos seus territórios na Síria e no Iraque, deixará de ser um
califado. Os califados não podem existir como movimentos clandestinos, porque
necessitam da autoridade territorial: acabe-se com o território que comandam e
todos os votos de obediência deixam de estar em vigor. Claro que alguns freelancers poderão
continuar a apelar ao combate contra o Ocidente e a decapitar inimigos. Mas o
valor propagandístico do califado desapareceria e com ele o alegado dever
religioso de imigrar para o servir. Se os EUA invadissem, a obsessão do EI pela
batalha de Dabiq faz depreender que seria necessário enviar vastos recursos
para lá, como se fosse uma batalha convencional. Se o Estado investisse
fortemente em Dabiq e depois a perdesse, poderia nunca mais recuperar.
Mas os
riscos de uma escalada são enormes. O maior defensor de uma invasão americana é
o próprio Estado Islâmico. Os vídeos provocatórios, nos quais um carrasco de
máscara negra se dirige ao Presidente Obama pelo nome, destinam-se claramente a
arrastar os Estados Unidos para a guerra. Uma invasão seria uma enorme vitória
da propaganda para os jihadistas em todo o mundo: independentemente de terem
dado a baya’a ao califa, todos acreditam que
os EUA querem lançar uma cruzada moderna e matar os muçulmanos. Mais uma
invasão e ocupação confirmariam essas suspeitas e aumentariam o recrutamento.
Se acrescentarmos a incompetência dos esforços anteriores enquanto ocupantes,
temos razões para estar relutantes. O crescimento do ISIS, afinal, só se
verificou porque a ocupação anterior abriu espaço para Zarqawi e os seus fiéis.
Quem sabe quais seriam as consequências de outro trabalho mal feito?
Tendo em
conta tudo o que sabemos sobre o Estado Islâmico, a melhor das opções militares
será continuar a sangria lenta e a guerra por procuração. Nem os curdos nem os
xiitas jamais se subjugarão nem controlarão o centro sunita da Síria e do
Iraque — são odiados ali e também não têm qualquer desejo de uma aventura
dessas. Mas podem impedir o Estado Islâmico de cumprir o seu desígnio de
expansão. E por cada mês que falha em expandir-se fica menos parecido com o
estado conquistador do profeta Maomé. Será mais um estado do Médio Oriente que
não consegue trazer prosperidade ao seu povo.
O custo humanitário da existência
do EI é elevado. Mas a sua ameaça para os EUA é menor do que pode sugerir o seu
permanente confronto com a Al-Qaeda. O ponto central da Al-Qaeda é raro entre
os grupos jihadistas por se focar no “inimigo distante” (o Ocidente); a maior
parte das preocupações da maioria dos jihadistas está mais perto de casa. Isso
é especialmente verdade no caso do Estado Islâmico, precisamente por causa da
sua ideologia. Vê inimigos a toda a volta e, apesar de a sua liderança não
querer bem aos EUA, a aplicação da sharia no califado e a expansão para
os territórios contíguos são prioritários. Baghdadi afirmou-o directamente: em
Novembro, declarou aos seus agentes sauditas que “lidassem com osrafidah [xiitas] primeiro... com os al-sulh depois [apoiantes sunitas da monarquia
saudita]... antes dos cruzados e das suas bases”.
Os
combatentes estrangeiros (e as suas mulheres e crianças) têm viajado para o
califado com bilhetes só de ida: querem viver sob o domínio da sharia e muitos desejam o martírio.
Recorde-se que a doutrina exige que os crentes vivam no califado se lhes for
possível. Um dos vídeos menos sangrentos do ISIS mostra um grupo de jihadistas
a queimar os seus passaportes franceses, britânicos e australianos. Isto seria
um gesto excêntrico para alguém que pretendesse regressar para se fazer
explodir no Louvre ou tornar refém mais uma loja de chocolates em Sydney.
Alguns
“lobos solitários” que apoiam o EI atacaram alvos ocidentais e mais ataques
surgirão. Mas a maioria são amadores frustrados, incapazes de emigrar para o
califado por terem os passaportes confiscados ou outros problemas. Ainda que o
EI felicite estes ataques, e fá-lo na sua propaganda, ainda não planeou nem
financiou nenhum. (O ataque ao Charlie Hebdo em Paris, em Janeiro, foi
sobretudo uma operação da Al-Qaeda.) Durante a sua visita a Mossul, em
Dezembro, Jürgen Todenhöfer entrevistou um jihadista alemão e perguntou-lhe se
algum dos seus camaradas tinha regressado à Europa para lançar ataques. O
jihadista falou dos retornados não como soldados mas como desistentes. “O facto
é que os que regressam do Estado Islâmico devem arrepender-se do seu regresso”,
afirmou. “Espero que reavaliem a sua religião.”
Se for
adequadamente contido, o EI fará a sua própria implosão. Nenhum país é seu
aliado e a sua ideologia garante que assim continuará. A terra que controla,
apesar de poder expandir-se, é praticamente desabitada e pobre. À medida que
estagnar ou que for encolhendo, o argumento de que pratica a vontade de Deus e
é o agente do apocalipse perderá força e poucos crentes chegarão. E quanto mais
notícias de pobreza saírem para fora, mais os movimentos islamistas radicais
nos outros sítios ficarão desacreditados. Ninguém tentou tanto aplicar a sharia de forma tão estrita através da
violência, e é isto que acontece.
Mesmo
assim, é pouco provável que a morte do Estado Islâmico seja rápida e as coisas
podem ainda correr muito mal: se o EI obtiver a obediência da Al-Qaeda —
aumentando de uma assentada a sua base —, poderá tornar-se a pior força a que
já assistimos. O fosso entre o EI e a Al-Qaeda tem crescido nos últimos meses;
a edição de Dezembro da Dabiq trazia um relato extenso de um
desertor da Al-Qaeda que descrevia o seu grupo como corrupto e ineficaz e
Zawahiri como um líder distante e desadequado. Mas devemos estar atentos a
qualquer aproximação.
Sem uma
catástrofe como esta, ou a ameaça de o EI tomar Erbil, uma grande invasão
terrestre certamente pioraria a situação.
V. Dissuasão
Seria fácil, quase uma desculpa, dizer que o problema do
Estado Islâmico é “um problema com o islão”. A religião permite muitas
interpretações e os apoiantes do EI estão moralmente agarrados à que
escolheram. E, contudo, denunciar pura e simplesmente o EI como anti-islâmico
pode ser contraproducente, sobretudo se quem ouve a mensagem conhece os textos
sagrados e vê neles justificadas muitas das práticas do califado.
Os
muçulmanos podem dizer que, agora, a escravatura não é legítima e que a
crucificação é reprovável na actual conjuntura histórica. Isto é, de facto, o
que muitos dizem. Mas não podem condenar liminarmente a escravatura ou a
crucificação sem contradizer o Corão e o exemplo do profeta. “O único terreno
seguro para os que se opõem [ao EI] é clamarem que alguns textos e ensinamentos
do islão perderam a validade”, diz Bernard Haykel. E isso seria abjuração.
A
ideologia proposta pelo Estado Islâmico exerce uma forte influência junto de
uma certa camada da população. Perante ela, as hipocrisias e inconsistências da
vida pura e simplesmente desaparecem. Musa Cerantonio e os salafistas que
conheci em Londres são assertivos: nenhuma das questões que lhes coloquei os
deixou a gaguejar. Foram muito eloquentes no seu sermão e, se aceitarmos as
suas premissas, convincentes até. Dizer que são anti-islâmicos parece-me que é
estar a desafiá-los para uma discussão em que saem a ganhar. Se eles fossem
somente uns maníacos fala-barato, podia vaticinar que o seu movimento implodia
à medida que os seus psicopatas se fazem detonar e, um a um, caem redondos no
chão.
Mas estes homens falavam com uma
precisão académica que só me fazia lembrar que estava perante licenciados de
peso. Até gostei de estar na companhia deles, e isso deixou-me com tanto medo
como tudo o resto.
Os não muçulmanos
não podem dar lições aos muçulmanos sobre como devem praticar a religião. Mas,
entre os muçulmanos, este não é um debate de agora. “Temos de ter padrões”,
disse-me Anjem Choudary. “Qualquer um pode dizer-se muçulmano mas se acredita
na homossexualidade ou em beber álcool, então não é muçulmano. Também não
existem vegetarianos não praticantes.”
Há,
contudo, uma outra variante do islão que oferece uma alternativa de linha dura
ao EI — igualmente intransigente, mas com resultados opostos. É uma alternativa
que já provou ter o seu encanto para os muitos muçulmanos amaldiçoados, ou
abençoados, na ânsia psicológica de assistirem a qualquer mudança de vírgula na
implementação dos textos sagrados tal como o eram nos primeiros tempos do
islamismo.
Os que apoiam
o EI sabem bem como deve reagir aos muçulmanos que ignoram partes do Corão: com
o takfir [excomunhão]
e ridicularizando-os. Mas sabem também que outros muçulmanos lêem tão
assiduamente o Corão como eles próprios e representam uma séria ameaça à sua ideologia.
Baghdadi é
salafista. O termo salafi foi deturpado e isso deve-se, em
parte, aos patifes que têm entrado na guerra com a bandeira salafista hasteada.
Mas a maioria dos salafistas não é jihadista e adere a seitas que rejeitam o
Estado Islâmico. Como refere Haykel, estão comprometidos em expandir o Dar
al-islam, a terra do islão, ainda que, eventualmente, tenham de pôr em prática
coisas monstruosas como a escravatura e a amputação — mas no futuro. As suas
prioridades são a purificação pessoal e o cumprimento dos ditames religiosos. E
acreditam que qualquer coisa que os desvie desse caminho — que dê origem a
guerras e a distúrbios que desfaçam vidas ou impeçam a prossecução dos estudos
— é proibido.
Eles vivem
no meio de nós. No último Outono, fui a Filadélfia visitar a mesquista de
Breton Pocuis, um imã que dá pelo nome de Abdullah, de 28 anos. A sua mesquita
fica na fronteira entre um bairro onde reina o crime, o Northern Liberties, e
uma área gentrificada a que poderíamos chamar Dar al-Hipster, na qual até a sua
barba passa despercebida.
Pocius, um
polaco de Chicago educado no catolicismo, converteu-se há 15 anos. Tal como
Cerantonio, também ele fala como uma alma veterana, mostrando a sua
familiaridade profunda com os textos antigos e o seu compromisso com os
ensinamentos, na crença de que é neles que reside a salvação ao fogo dos
infernos. Quando nos encontramos num café das redondezas, ele traz consigo um
trabalho académico em árabe sobre o Corão e um livro de auto-ajuda para
aprender japonês. Estava a preparar o seu sermão sobre as responsabilidades e
obrigações da paternidade para os cerca de 150 fiéis da sua assembleia das
sextas-feiras. Diz Pocius que o seu principal objectivo é encorajar os fiéis da
mesquita a que conduzam as suas vidas de uma forma halal [aquilo que é permitido ou legal à luz
da lei islâmica]. Mas o crescimento do EI têm-no forçado a equacionar
determinadas questões políticas que à partida estariam longe da cabeça de
qualquer salafista. “A maior parte das coisas que eles dizem sobre como devemos
orar ou nos vestir é tal e qual o que transmito à minha masjid [mesquita]. Mas quando abordam
questões sobre convulsões sociais, parecem o Che Guevara.”
Quando
Baghdadi apareceu, Pocius adoptou o slogan “Não é o meu khalifa”. “Nos tempos do
profeta, muito sangue foi derramado”, diz-me, “e ele sabia que o caos seria o
pior que poderia acontecer a todos, sobretudo dentro da umma [comunidade].” Por isso, diz
Pocius, a atitude correcta de um salafista não é semear a discórdia aderindo a
facções e declarando os outros muçulmanos apóstatas. Pelo contrário, Pocius e a
maioria dos salafistas acham que os muçulmanos se deveriam afastar da política.
Estes salafistas reservados, como são conhecidos, concordam com o que diz o
Estado Islâmico de que a única lei é a de Deus e rejeitam o voto e a criação de
partidos políticos. Mas interpretam o ódio que o Corão tem ao caos e à
discórdia como um pedido para que sigam o líder, seja ele qual for, incluindo
os que são verdadeiros pecadores. “Diz o profeta que, enquanto o líder não
ceder claramente ao kufr [descrença], lhe devemos toda a
obediência”, explica-me Pocius, dizendo que os clássicos “livros de credo”
alertam todos para o perigo da revolta social. Os salafistas reservados estão
completamente proibidos de separar um muçulmano de outro, nomeadamente pela
excomunhão em massa. Viver sem baya’a, diz Pocius, faz de
uma pessoa um ignorante, ou incivilizado. Mas a baya’a não significa lealdade imediata e cega
a um califado, e muito menos a Abu Bakr al-Baghdadi. De uma forma mais
alargada, pode querer dizer, isso sim, lealdade a um contrato social religioso
e compromisso com a comunidade muçulmana, seja ela liderada por um califa ou
não.
Estes
salafistas preconizam que os muçulmanos devem conduzir as suas energias para o
aperfeiçoamento da vida privada, incluindo a oração, os rituais e a higiene. E,
assim como os judeus ultraortodoxos debatem se no Sabath e à boa maneira kosher faz sentido rasgar papel higiénico em
pedaços [uma das regras na preparação do descanso semanal do judaísmo] — e será
que a moda da “roupa rasgada” também conta? —, eles passam uma enorme
quantidade de tempo a avaliar se têm as calças demasiado compridas ou se as
suas barbas estão bem aparadas num lado mas desgrenhadas no outro. Com toda
esta exigente devoção, Deus, assim o crêem, irá retribuir-lhes em força e em
número, e talvez um califado possa emergir. Só então, os muçulmanos terão a sua
vingança, e sim, chegarão a uma vitória gloriosa em Dabiq. Mas Pocius cita
alguns teólogos modernos salafistas que asseguram que um califado não vem se
não da vontade indómita de Deus.
E isso é
algo com que o Estado Islâmico irá com toda a certeza concordar, acrescentando
que Deus já nomeou Baghdadi. A réplica de Pocius pretende apelar à humildade. E
cita Abdullah Ibn Abbas, um dos companheiros do profeta, que se sentou com
dissidentes e lhes perguntou como poderiam ter o descaramento, sendo eles uma
minoria, de afirmar que a maioria estava errada. A dissidência propriamente
dita, assim como o derramamento de sangue e a divisão da umma,
é proibida. De certa maneira, até a constituição do califado de Baghdadi
contradiz todas as expectativas, diz. “É a Alá que cabe estabelecer o khilafa e envolveria consenso dos eruditos de
Meca e Medina. Não foi isso que aconteceu. O EI apareceu vindo do nada.”
Mas esta é
uma conversa que o EI não aceita, e os seus seguidores são sarcásticos nos tweetts sobre os salafistas reservados. Gozam
chamando-lhes “salafistas da menstruação” por causa dos seus obscuros julgamentos
sobre quando as mulheres estão limpas ou não, bem como sobre outros aspectos
menos prioritários da vida. “Do que precisamos agora é de uma fatwa [decreto] que nos indique como
éharam [proibido] andar de bicicleta
em Júpiter”, twittou um deles de forma muito seca. “É nisto que os eruditos se
deviam focar. Pressionar mais do que andarem a frisar a Umma.”
Já Anjem Chouldary diz que não há maior pecado do que a usurpação da lei de
Deus e que as posições extremistas em prol do monoteísmo não devem ser vistas
como fraqueza.
Os Estados Unidos não apoiam de
modo nenhum Pocius, ainda que este se apresente como alternativa de peso ao
jihadismo. Tendem inclusive a desacreditá-lo. E ele é amargo e diz que a
América o trata “menos do que a um cidadão”. (Alega que o governo infiltrou
espiões na sua mesquita e assediou a mãe no trabalho colocando-lhes questões
sobre ele ser um potencial terrorista.)
Contudo, o
seu salafismo apresenta-se como antídoto ao jihadismo ao estilo de Baghdadi.
Nem todos os que chegam à fé ansiosos por lutar podem escapar do jihadismo, mas
para aqueles cuja principal motivação é encontrar uma versão ultraconservadora
e inflexível do islão, esses têm aqui a alternativa. Não é o islão moderado,
alguns vê-lo-ão mesmo como extremado. É, contudo, a versão do islão que até
para as mentes mais literais não é hipócrita nem foi expurgada de forma
blasfémica dos seus inconvenientes. A hipocrisia não é pecado que as mentes
mais jovens da teologia tolerem.
O melhor
seria que as autoridades ocidentais parassem de lançar mais achas para a
fogueira do debate teológico islâmico. O próprio Barack Obama, ao afirmar que o
EI não é “islâmico”, entrou nas profundas correntezas do takfiri e derrapou — logo ele, que
ironicamente é um não muçulmano filho de um muçulmano que até poderia ser
considerado apóstata e agora pratica o takfir contra os muçulmanos. Os não
muçulmanos que agem conforme os requisitos do takfir gracejam com os jihadistas (“Como
porcos cobertos de porcaria que dão lições de higiene a outros”, twittou um
deles).
Imagino
que a maioria dos muçulmanos aprecie os sentimentos de Obama: o Presidente
mostrou estar do lado deles e contra Baghdadi e os chauvinistas não muçulmanos
que os tentam implicar nos crimes. Mas a maioria dos muçulmanos não é sujeita a
juntar-se à jihad. E os que aderem vêem
confirmadas as suas suspeitas de que os Estados Unidos mentem sobre a religião
para alcançar os seus objectivos.
E o EI lá
vai cantando e rindo, trauteando energicamente — até com criatividade — dentro
dos limites apertados da sua teologia. Mas fora desses limites não poderia ser
mais árido ou silencioso: uma visão da vida enquanto obediência, ordem e destino.
Muse Cerantonio e Anjem Choudary tanto podem estar a discutir mortes em massa e
tortura diária como as virtudes do café do Vietname e de bolos demasiado
açucarados. E fazem-no com aparente deleite. Parece-me, contudo, que abraçar os
seus pontos de vista seria ver todos os sabores que existem neste mundo
tornarem-se insípidos por comparação às atrocidades grotescas do que pode aí
vir no futuro.
Até posso
apreciar a companhia de um e de outro, enquanto exercício intelectual que me
faz sentir tão culpado quanto me dá prazer... mas até um certo ponto. Na
recensão que George Orwell fez ao Mein Kampf, em Março de 1940, o escritor
confessou: “Nunca consegui sentir antipatia por Hitler”; apesar dos seus
objectivos abomináveis e cobardes, havia qualquer coisa de pobre coitado
naquele homem. “Se matava um rato que fosse, fazia-o como se de um dragão se
tratasse.” Os apoiantes do EI têm umaallure muito semelhante. Acreditam estar
pessoalmente envolvidos numa luta que transcende as suas vidas e que o simples
facto de serem arrastados para o drama, estando no lado do bem, é um privilégio
e um prazer — sobretudo se for igualmente um fardo.
O
fascismo, continuava Orwell, é “psicologicamente muito mais sólido do que
qualquer ideia hedonista da vida... Enquanto o socialismo, e até mesmo o
capitalismo de uma forma mais relutante, tem dito às pessoas ‘dou-te a
oportunidade de passares um bom bocado’, Hitler disse às pessoas “dou-vos luta,
perigo e morte, e em resultado teve uma nação prostrada a seus pés... Não
devemos subestimar o encanto que possa ter ao nível das emoções. Nem, no caso
do EI, o seu encanto religioso ou intelectual”. Que o EI sustente como dogma o
cumprimento iminente da profecia, isso ao menos transmite-nos o valor do nosso
opositor. Está disposto a louvar a sua quase autodestruição mas mantém-se
confiante, mesmo quando cercado, de que irá receber a graça divina se se
mantiver fiel ao modelo profético. As ferramentas ideológicas podem convencer
alguns dos possíveis convertidos de que a sua mensagem de grupo é falsa, e as
ferramentas militares podem impor limites aos seus horrores. Mas para uma
organização tão impenetrável à persuasão como é o EI, poucas medidas
importarão, e a guerra pode bem vir a ser longa, ainda que não termine com o
fim dos tempos.