Ao restaurar o regime político democrático no
Brasil, a Constituição Federal de 1988 previu, dentre os objetivos fundamentais
da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como
a erradicação da pobreza e da marginalização, com a progressiva redução das
desigualdades sociais. Nota-se, ainda, a preocupação com a promoção do bem de
todos, sem discriminações de qualquer natureza (artigo 3º, incisos I, III e
IV).
É notório que o constituinte, ao fazer constar na
Lei Maior tais princípios, teve por escopo estabelecê-los como metas a serem
atingidas ao longo da caminhada democrática, rompendo com a ideia de uma
simples “igualização estática”. Nesse sentido, mais que coibir práticas
discriminatórias, deve o Estado implementar e viabilizar iguais oportunidades
aos indivíduos, como meio de se corrigir as injustiças oriundas da política de
exclusão das minorias promovida desde o processo de colonização do País.
Tal raciocínio é extraído, em parte, a partir do
voto do Ministro Marco Aurélio (STF), por ocasião do julgamento da APDF 186,
que tratava da constitucionalidade da política de cotas étnico-raciais para a
seleção de estudantes da Universidade de Brasília. Naquela oportunidade, o
Ministro afirmou que “a meritocracia sem igualdade de pontos de partida é
apenas uma forma velada de aristocracia”.
Há pouco mais de uma semana publiquei, em minha
página pessoal nas redes sociais, uma reflexão acerca da meritocracia e da
diferença de oportunidades entre os indivíduos. Em poucas horas – e para a
minha surpresa –, o conteúdo foi compartilhado por milhares de pessoas,
levantando polêmicas, críticas, distorções propositais, elogios.
Ao longo da minha vivência como cidadã, e não
apenas como magistrada, notei que, para muitos, o esforço pessoal não era
suficiente. Faltava algo. Obviamente existem exceções à regra, como o Ministro
Joaquim Barbosa, negro e de origem pobre, ou, ainda, o apresentador de
televisão Silvio Santos, o qual, antes de se tornar um dos homens mais famosos
do Brasil, trabalhou como camelô.
Todavia, pautar nosso raciocínio em “pontos fora
da curva”, além de revelar certa dose de desonestidade intelectual, remete-nos
à conclusão de que teria faltado força de vontade às pessoas que, nascidas nas
mesmas condições do Ministro e do apresentador, não tiveram o mesmo destino. E
tal afirmação, sabemos, é esdrúxula.
O cerne de toda a polêmica questão consiste na
necessidade do reconhecimento de privilégios. Isso porque, ao falarmos de
meritocracia, voltamos nossa atenção exclusivamente ao mérito, deixando de lado
a condição de vantagem que alguns grupos de indivíduos têm em relação aos
demais.
Nascer branca no seio de uma sociedade racista e
de tradição escravocrata é, inequivocamente, um privilégio a ser considerado.
Há uma dívida histórica para com o povo negro: foram 354 anos de escravidão
oficial. A abolição, teoricamente ocorrida há 130 anos, jamais significou a
inclusão social do negro, que sofre até hoje as consequências desse nefasto
período da História.
Não há como ignorar os dados. Segundo pesquisa
divulgada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Instituto
Ethos, apenas 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras
são ocupados por negros. De acordo com o censo realizado pelo Conselho Nacional
de Justiça (CNJ), no ano de 2014, 1,4% dos juízes brasileiros são negros. Por
fim, conforme aponta o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(Infopen), que traz dados de dezembro de 2014, 61,6% da população carcerária o
Brasil é composta por pretos e pardos.
A ideia que pretendo passar é bem resumida por
Talib Kweli: “nenhuma pessoa branca que vive hoje é responsável pela
escravidão. Mas todos brancos vivos hoje colhem os benefícios dela, assim como
todos os negros que vivem hoje têm cicatrizes dela”.
A conscientização dos privilégios advindos da
branquitude é o primeiro passo para que reconheçamos a importância das ações
afirmativas como meio de inclusão social e econômica de um povo cujas
reivindicações são sistematicamente ignoradas pela sociedade e pelo Estado. E
aqui não tratamos de dinheiro (negros pobres x negros ricos). Tratamos de
representatividade.
A invisibilidade é fatalmente corroborada pela
constatação de que tudo o que falo aqui é diariamente repetido e denunciado
pelo movimento negro por meio de diversos grupos, dentre os quais podem ser
citados o Unegro, Uneafro, Educafro e Negrex. Porém, enquanto eu, branca, fui
ouvida ao tratar do assunto, negros são absolutamente silenciados e ignorados.
Em relação às cotas sociais, direcionadas a
pessoas de baixa renda, o raciocínio é similar. Ao me tornar juíza de direito,
foi inevitável não encarar e questionar a realidade social que ultrapassa as
barreiras físicas do meu gabinete.
Vi meninos e meninas que andam descalços e
trabalham duro na roça, desde cedo, a fim de auxiliar a renda familiar. Conheci
um garoto de 12 anos com dentes podres e analfabeto. Tive contato com crianças
que sequer sabem o que é um computador. Descobri que uma menina de 14 anos
nunca havia comemorado seu aniversário. Conheci crianças que frequentavam a
escola tão somente em razão da merenda.
E, olhando de fora a tragédia social que me
cerca, comparando minha história à vida dessas pessoas, eu reafirmo: não é
justo. Não é justo que entrem, em iguais condições, nessa insana competição por
um lugar ao sol. Não é justo acreditar que podem ser guiadas pela fé, apenas;
há que existir algo mais palpável. Não é justo jogar em seus ombros todo o peso
da ausência de políticas estatais.
Apontar a responsabilidade do Estado na vida dessas
pessoas, exigindo sua atuação efetiva, não se trata de mero discurso ideológico
ou, ainda, de “coitadismo”. Trata-se da correta interpretação do texto
constitucional e do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, do
qual o Brasil é signatário.
O mérito, assim, deve ser medido a partir da
igualdade de oportunidades. Ao ser comparada com alguém que teve iguais
condições a mim, tenho, sim, mérito. Do contrário, tenho privilégio, o que de
maneira alguma anula minha luta e esforço para chegar onde cheguei.
A todos, sem distinção, é possível a conquista de
seus objetivos. Contudo, é ingênuo acreditar que a vontade, apenas, pode
materializar sonhos. É preciso mais. E a observância à Constituição Federal, o
contato com a realidade social que nos cerca e um toque de empatia são os
primeiros passos na direção da justiça e da igualdade. O resto, aí sim, fica
com o indivíduo.
*Fernanda Orsomarzo é Juíza de Direito do
Tribunal de Justiça do Paraná. Pós-graduada em Direito Processual Penal.
Pós-graduanda em Filosofia e Direitos Humanos pela PUC-PR. Membro da Associação
Juízes para a Democracia (AJD).