Aprendi com o filme “Coração Valente” que a
história é a versão dos vencedores. William Wallace, celebrado no filme
estrelado por Mel Gibson, foi considerado herói dos escoceses, mas é ainda
visto como um vilão traidor para a coroa inglesa.
Não há heróis que gozem de unanimidade em
ambos as trincheiras. Alguns não são unanimidade nem mesmo entre seu próprio
povo. Tomemos por exemplo Nelson Mandela. Se você imagina que o homem que
derrotou o regime de segregação do Apartheid na África do Sul é celebrado por
todos naquele país, você está redondamente enganado. Ainda hoje, Mandela é
odiado, principalmente pela classe dominante. Chamam-no de comunista,
terrorista, corrupto, e daí para baixo. O mundo inteiro o celebra, menos seu
próprio povo, ou parte dele.
E o que dizer de Martin Luther King? Enquanto
morei nos EUA, pude presenciar o desconforto que era, principalmente para
famílias brancas, terem que comemorar um feriado dedicado ao pastor responsável
pela conquista dos direitos civis dos negros americanos. Entre eles, Luther
King não passava de um embuste. Espalharam até que, além de comunista, ele
também era promíscuo, e teria sido morto durante uma orgia com várias
prostitutas. Porém, aqueles que se beneficiaram de sua luta consideram-no seu grande
herói.
De Mahatma Gandhi, o maior pacifista do
século XX, dizem que mantinha um caso homossexual, mesmo estando casado. De
Madre Teresa de Calcutá, mulher que dedicou sua vida a cuidar de leprosos na
Índia e que foi canonizada pelo Papa Francisco, dizem que era endemoninhada,
temperamental e intratável.
Por isso, sempre olho com reservas qualquer
tipo de tentativa de difamar alguém que tenha lutado por um mundo mais justo.
Se foram vilões para os impérios que combateram, certamente foram heróis de povos
que libertaram ou pelo qual lutaram.
Recentemente, o Papa Francisco (que também já
está sendo acusado de ser comunista!) anunciou a reabertura do processo de
canonização de Dom Óscar Romero, arcebispo de San Salvador (1977-1980). Em uma
de suas homilias, Dom Romero afirmou que a missão da igreja é identificar-se
com os pobres. Na véspera de seu assassinato, fez um contundente pronunciamento
contra a repressão em seu país: “Em nome de Deus e desse povo sofredor, cujos
lamentos sobem ao céu todos os dias, peço-lhes, suplico-lhes, ordeno-lhes:
cessem a repressão.” Aquilo foi a gota d’água. Óscar Romero foi assassinado
enquanto celebrava a missa em 24 de março de 1980 por um atirador de elite do
exército salvadorenho, treinado na Escola das Américas. Apesar de ser de
tradição protestante, celebro a canonização do Romero por reconhecer seu árduo
trabalho em defesa dos excluídos de sua nação, tanto quanto celebro a
canonização de Madre Teresa.
No Brasil, tivemos Dom Hélder Câmara, que
militou bravamente contra a opressão social no país. Certa vez, o arcebispo de
Olinda disse: “Quando dou comida aos pobres, chamam-me de santo. Quando
pergunto por que são pobres, chamam-me de comunista.” O Vaticano já autorizou a
abertura de processo de beatificação do Dom Hélder. Homens como Romero e Câmara
me inspiram em minha luta contra a injustiça e a desigualdade social.
Quando perseguido pelo nazismo, Deitrich
Bonhoeffer, o célebre pastor e teólogo alemão, escreveu um tratado considerado
uma das maiores obras primas do protestantismo, que recebeu o nome de
"Ética". Nesta obra, ele justifica seu engajamento na resistência
alemã anti-nazista e seu envolvimento na luta contra Adolf Hitler, dizendo que:
"É melhor fazer um mal do que ser mau." Bonhoeffer foi considerado um
terrorista pelos nazistas e acabou condenado à morte após participar de uma
tentativa de assassinato de ninguém menos que Hitler. Devemos concordar com os
nazistas e achar que Bonhoeffer não passava de um bandido?
O que haveria em comum entre os nomes que
expus acima? Mesmo professando credos diferentes, desafiaram o status quo
movidos por seu idealismo. Ideologias e dogmas não são maiores do que ideais e
amor.
Hermes Fernandes